O continente que tem como continuação o arquipélago
Fabiola Notari
Panos de vestir a casa de Francisca
22/03/2018
Fabiola B. Notari é artista visual e pesquisadora. Doutoranda em Literatura e Cultura Russa no Departamento de Letras Orientais (FFLCH/USP) e mestre em Poéticas Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (FASM/ASM). Leciona História da Fotografia e Fotomontagem no curso superior de Fotografia no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e coordena o Grupo de Estudos Livros de artista, livros-objetos: entre vestígios e apagamentos na Casa Contemporânea.
Hoje foi um dia de um encontro muito especial, durante um almoço num restaurante na Vila Mariana, no Ordi, Fabiola me contou sobre suas lembranças ao se deparar com as perguntas do projeto e que guiaram suas escolhas de texto e tecido para o trabalho. Levei para o encontro algumas páginas já dobradas e cortadas do livro "Japan: season by season"de Sandrine Bailly para receberem a transcrição dela. Escolhi oferecer as páginas desse livro porque o projeto nasceu enquanto eu trabalhava com ele, realizando uma idéia anterior a essa. Na época eu havia apresentado esse trabalho para a Fabiola em uma de suas aulas no grupo de estudos "Livro de artista: entre vestígios e pagamentos" que coordena. E foi um encontro muito bonito, passou-se alguns meses, as idéias fermentaram e nasceu o projeto O continente que tem como continuação o arquipélago. Estamos aqui a inaugurá-lo.
A seguir, uma breve transcrição da nossa conversa.
As imagens que se seguem referem-se ao livro-página que ficará comigo para o acervo do projeto, com a transcrição do texto selecionado e transcrito pela Fabiola.
"- Fabiola: Ana, então agora vou te contar como é que eu pensei a sua proposta. Com relação à roupa, eu escolhi trazer não uma roupa de vestir pessoas mas uma roupa de vestir a casa. Peguei um paninho. Eu fui criada junto com a minha avó e meus pais e a minha avó gostava muito de colocar paninhos de decoração na cozinha. Ela tinha várias temáticas e a que eu trouxe é a da temática de flores que eu gosto muito.
Quando minha avó veio a falecer em 2003, minha mãe não gostava muito de paninhos então ela tirou os paninhos da casa e tal... e eu os guardei ainda que não tivessem muita utilidade. E um dia eu pensei: vou fazer um livro com esses paninhos e quando recebi o seu convite para participar do trabalho, a primeira coisa em que pensei foi nesses paninhos.Mas aí tive que escolher e eu escolhi o mais colorido porque a minha avó era muito alegre, apesar de todos os problemas ela era sempre muito alegre.
Ana: - E como ela se chamava?
- F: Francisca, Francisca Coelho. Minha avó Quita!Que me criou e que de certa maneira foi ela que me instigou à minha própria poética. Ela já era falecida quando eu descobri que a minha pegada de estudo era memória, através da escrita.
Ela me veio como uma imagem porque ela era uma pessoa que estava sempre escrevendo pelos cantos, escrevia nas capas de revistas, folhinhas... anotando coisas, receitas, números de mega-sena, só que depois ela não lembrava onde ela tinha anotado. Então não adiantava nada ela anotar. E sem contar que a caligrafia dela era quase um rabisco, era rápida, então só ela conseguia ler. E aí quando eu fui pensar no tecido, veio essa coisa do paninho da casa, veio ela e na sequência veio o trecho do texto da Carta aos Coríntios, porque ela é muito amor e tem a ver com memória.
E eu acredito que o livro que consegue fazer a intersecção com todos os outros livros é a bíblia. I Coríntios,13: 4-7, que diz assim:
"O amor é paciente, é benígno, o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; no se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta."
E porque que eu pensei nesse trecho? A minha avó não foi feliz no amor, mas ela tinha muito amor dentro dela, e se a gente tem mesmo esse amor, a gente supera qualquer coisa.
E como esse tecido para mim é muito amor,que envolve memória e envolve também essa história de buscarmos sempre o nosso melhor,por isso eu escolhi esse livro e esse trecho. Só que esse amor é paciente, sabe que tem o seu próprio tempo, E a gente adora apressar o tempo...
Como esse trabalho sempre tem início com uma conversa, é dela que surge o texto que escolho para fazer o livro-página que seguirá para a casa da Fabiola, por correspondência, como contrapartida pela sua colaboração para o projeto. E o texto que escolho é um poema de Jalal ud- Din RUMI que se chama "A raiz da raiz de teu ser" do livro Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz, com tradução de José Jorge de Carvalho. A página de livro escolhida é do mesmo livro que levei para o encontro já citado à cima, pois serão livros irmãos. Um ficará com ela e outro comigo. Usarei o tecido do paninho que ela trouxe para o projeto, o mesmo que estou usando para fazer os dois livros-página porque quero que ela receba esse paninho agora transformado em trabalho e que guarda toda a sua história e tanto afeto.
Fabiola recebeu o livro-página em mãos no dia 24 de abril de 2018.
Seguem as fotos que ela enviou da chegada do livro em sua casa e do local de morada escolhido para o livro-página do projeto.
"Mia o recebeu em casa e depois ele se encontrou finalmente com minha amada avó."