O continente que tem como continuação o arquipélago
Gisele Minasse
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Vestido de um tempo que não vivi
Gisele Minassi
26/06/2018
A data em que eu nasci foi 17 de abril de 1969.
Cursei o colégio Singular.
Ingressei na FAU em 1988.
Em 1992, com ajuda de amigos e familiares abrimos a loja Antes de Paris em Pinheiros, numa sobreloja.
Eu criava e confeccionava com minha mãe roupas na época chamadas Atemporal e meu amigo Paulo Babboni fazia Bijoux autorais.
A loja se mudou para a Vila Madalena em 1996 na rua Aspicuelta e lá permaneceu até 2015, só mudando de casa.
Formalizei a união com meu atual marido em 2003, grávida do meu filho único. O Arthur nasceu de 34 semanas, em casa no susto! Hoje, depois de várias mudanças, estabeleci a loja no Campo Belo há um ano.
Manhã de sol em São Paulo. A Gisele aceitou meu convite para participar desse projeto e me convidou para uma conversa hoje, pela manhã na sua nova loja, Antes de Paris, no Campo Belo. Conheço a Gisele há muitos anos, talvez há uns dez anos, sou apaixonada pelas suas criações e passei a me interessar e conhecer um pouco mais sobre o seu universo de criação. Sempre que nos encontrávamos, e foi assim desde a primeira vez, passávamos horas conversando sobre arte, os projetos que estávamos desenvolvendo, trocávamos referências de artistas, materiais e acompanhávamos, de alguma forma, o trabalho uma da outra. Quando nos conhecemos ela tinha um espaço na Vila Madalena onde hoje é uma casa de chá, e me lembro, na época, da alegria que senti ao escutá-la dizer que abria seu espaço apenas em alguns poucos horários porque precisava de tempo para criar e continuar desenvolvendo suas pesquisas, e pensei: puxa, como é bom encontrar uma artista que se respeita, respeita seu tempo, sua medida.
Levei para o encontro algumas páginas já dobradas e cortadas do livro "Japan: season by season" de Sandrine Bailly para receberem a transcrição dela e fazermos juntas o livro-página que ficará para o projeto. E Gisele escolheu a página com o poema de Ariwara No Narihira e ilustração de Umesaka ôri.
A seguir, uma breve transcrição da nossa conversa e imagens sobre o processo do trabalho.
As imagens que se seguem referem-se ao livro-página que ficará comigo para o acervo do projeto, com a transcrição do texto selecionado e transcrito pela Gisele.
- Ana: Me conta sobre esse vestido que você escolheu para o projeto?
- Gisele: Eu usei muito esse vestido, adoro ele, ele não é só romântico, ele remete a um tempo, essa estampa... eu amo essa estampa. Ela me traz uma nostalgia, aliás eu tenho muito isso, nostalgia de um tempo que eu não vivi, de uma época que eu não vivi, me dá uma saudade de um tempo que eu não vivi... E essa estampa me remete a isso, ao inicio dos anos 60. E eu imagino também a estampa, o modelo a um contexto, uma coisa charmosa, um verão charmoso, eu vejo cenário, a luz, um espírito partindo de uma estampa. A estampa me traz um tempo, um lugar, uma história, parti da estampa para criar esse modelo.
Criar essas roupas, para mim, são como criar e realizar uma vivência, essa estampa me transporta ao meu imaginário.
A roupa te permite viver várias vidas!
Tem uma estória que eu acho incrível, num filme Os dois mundos de Jennie Logan, a personagem vivida pela Lindsay vai morar num casarão, descobre um vestido dentro de um baú de roupas e fotos no sótão da sua casa e quando ela veste um vestido, ela volta para um tempo de 100 anos atrás... e eu achei isso muito legal, esse filme marcou muito a minha adolescência. E a gente viaja no tempo mesmo... a nossa imagem refletida nos traz coisas muito fortes. Tanto é que algumas pessoas que fizeram cirurgia do estômago e emagreceram muito, elas, às vezes, mudam até de personalidade.
Uma imagem é uma identidade e uma roupa permite que a gente se perceba de uma outra forma, permite mesmo uma vivência única.
A gente precisa de uma forma para entender o que está acontecendo com a gente.
"- Ana: Então, Gisele, me conte sobre as suas escolhas:
-Gisele: Escolhi a Clarice Lispector. Não sou uma devoradora de livros, já fui, mas hoje em dia há tanta demanda, celular, e-mail, instagram, trabalho, filho... que falta mesmo esse tempo para ler. Mas a Clarice Lispector é para mim minha guru. Adoro o que ela fala, acho que é a Clarice na escrita, o Wim Venders no cinema... agora o Wim Wenders me decepcionou nos últimos filmes que assisti dele, mas ele fez filmes que até hoje eu vejo, eu reflito, escrevo, fico pensando nas falas, nos textos...é incrível.
E a Clarice é uma artista que me faz compreender tanto eu mesma, como o mundo. Então eu selecionei dois textos curtos do livro "A descoberta do mundo", que me fizeram mudar a minha visão sobre as coisas, principalmente um deles. Posso ler?
- Ana: Claro!
- Gisele:
" Condição Humana (4 de janeiro, 1965)
Minha condição é muito pequena, sinto-me constrangida a ponto de que seria inútil ter mais liberdade. Minha condição pequena não me deixaria fazer uso da liberdade, enquanto que a condição do universo é tão grande que não se chama de condição. O meu descompasso com o mundo chega a ser cômico, de tão grande. Não consigo acertar o passo com ele. Já tentei me por a par do mundo e fico apenas engraçada. Uma das minhas pernas sempre curta demais. O paradoxo é que minha condição de manca é também alegre por que faz parte dessa condição. Mas se me torno séria e quero andar certo com o mundo, então eu me estraçalho e me espanto. Mesmo então, de repente, rio de um riso amargo que só não é mau porque é da minha condição. A condição não se cura, mas o medo da condição é curável."
- Gisele: Penso que há coisas que a gente acha que são nossas escolhas, que a gente acha que somos originais, mas não somos originais... existe uma coisa que é muito mais forte que é o arquétipo humano, a condição humana, ... então isso nos liberta até do julgamento das outras pessoas sobre nós e sobre nós julgarmos os outros.
-Ana: A sua leitura me tocou muito porque fala de um desajuste que eu sinto muito fortemente e esse escrito parece dar voz a isso que sinto e que eu não saberia descrever tão bem, como ocorre com praticamente tudo que leio dessa mulher. Ouvir isso, permite me reconsiderar, no sentido de estar melhor siderada comigo e comigo fazendo parte desse universo. Falando desse descompasso que parece ser assim mesmo inevitável, mas que por causa dele é que algo em nós pode permanecer aberto, uma abertura para o mundo, para a vida, para o outro que também somos e desconhecemos.
- Gisele: É. Essa ansia de querer acertar que nos faz sofrer. Aceitar que somos mesmo mancas.
E tem também o outro texto que separei: A perfeição, escrito em 23 de novembro de 1969. E 69 é o ano em que nasci.
" O que me tranquiliza é que tudo que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho da cabeça de um alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição."
-Ana: você se lembra como você chegou na Clarice, como vc a conheceu?
- Gisele: foi através de uma professora de português que me deu aula no ginásio. Ela contava para a gente a estória de Paixão segundo GH e eu fiquei encantada. Ela era muito apaixonada pela Clarice e acho que essa paixão passou para mim.
-Ana: e é tão interessante quando alguém nos devolve um autor que amamos através de uma leitura assim... você acaba de me oferecer essa Clarice aberta novamente. Eu tenho quase todos os livros dela. Mas estão lá na minha estante, faz tempo que não abro, um ano e meio mais ou menos, e agora ela se abre novamente, através de você compartilhando dessa sua convivência com ela.
-Gisele:Mas eu também, fazia tempo que eu não a lia... mas por conta desse projeto ela veio. Estava pensando a partir das suas perguntas iniciais para participar do projeto, que livro seria e eu disse, claro! É a Clarice, a Clarice faz parte da minha vida!
Ah, tem um livro para adolescente que eu dei para o meu filho que fala justamente disso, chama-se O livro selvagem, de Juan Villoro, não sei se você já leu? Eu acho tão legal, um menino vai visitar um tio que tem uma biblioteca enorme e ele encontra o livro selvagem que é um livro que só aparece para quem ele quer. Então tem uma coisa de mistério, um suspense... mas me lembrei dessa estória porque acho que é um pouco isso: os livros aparecem para você quando eles querem.
Como esse trabalho sempre tem início com uma conversa, é dela que surge o texto que escolho para fazer o livro-página que seguirá para a casa da Gisele, como contrapartida pela sua colaboração para o projeto.
E escolho dois trechos do livro As pequenas virtudes de Natalia Ginzburg. Pois, o que a Gisele trouxe de Clarice, sua sensação de descompasso com o mundo, me remeteu a uma sensação de exílio. De forma que é sobre o exílio o primeiro trecho que escolhi transcrever.
E por outro lado, temos uma amizade que é sempre permeada pelo universo das roupas que têm história, e Natalia Guinsburg, em um dos meus trechos favoritos desse livro, conta sobre sua amizade e cumplicidade com uma amiga que, assim como ela, tinha apenas um par de sapatos rotos. A página de livro escolhida para esse livro-página é do mesmo livro que levei para o encontro já citado à cima. Aqui nesse encontro entre livros-página, conversam Clarice e Natalia Ginzburg. Um ficará com ela e outro comigo. O mesmo tecido do vestido que ela ofereceu para o projeto é usado então para fazer os dois livros-página, Natalia e Clarice unidas por um vestido.
E assim também Gisele terá consigo uma parte do vestido que agora participa de outra história.
Gisele recebeu o livro-página em mãos no dia 17 de agosto de 2018.
Nesse mesmo dia, mais tarde, recebi uma mensagem dela que transcrevo aqui:
"Oi Ana, li o livro e entendi a escolha do texto e a cumplicidade que os sapatos rotos criou na autora. Esse livro traz uma familiaridade por causa do tecido que veste a capa remetendo ao passado, mas a surpresa é que não se pode subestimar o conteúdo pelo tamanho. As páginas em dobraduras é um jogo de procura e uma subversão da ordem. Parecem portas de aposentos que vão revelando a narrativa.
Talvez para uma pessoa com pouca sensibilidade não faria sentido. Mas, como você mesma disse, o processo já é uma vivência do trabalho. Obrigada! Muito inspirador!"
A seguir as fotos que ela enviou da chegada do livro em sua casa e do local de morada escolhido para o livro-página do projeto.